MORREU SEU JOÃO, NÃO TEM MAIS SANDUÍCHE

MORREU SEU JOÃO, NÃO TEM MAIS SANDUÍCHE

A sensação era de que ele atravessava a coxia e entrava em cena, ao vir pela porta da casa contígua, descer uma curta escada e sair já sobre o palco, o chão do bar que leva o seu nome, na rua Maurício de Castilho, 89, na esquina com uma praça.
Trajava sempre o mesmo figurino: a boina escura na cabeça e o avental branquíssimo de corte clássico, costurado sob encomenda, recobrindo o corpo magro e muito alvo.

Com 89 anos (faria 90 em 15 de junho próximo), reinava ao seu ritmo cadenciado e constante, um grande artista sabedor das manhas do seu ofício. Valia muito o ingresso para observá-lo em ação.
O Bar do Seu João: recinto claro, simples e sempre muito bem limpo e arrumado. O balcão de fórmica clara, os bancos rígidos no chão, as pequenas prateleiras fixadas a alturas diferentes nas paredes de cerâmica clara, sustentando bebidas alcoólicas bem alinhadas. Um ambiente sóbrio e digno.

Naquele cantinho do lado direito do recinto, quase um anexo (um vão de passagem, uma divisória de vidro marcam seus limites), ninguém podia botar a mão, não. Ai do Marquinhos, seu fiel escudeiro de décadas, um sujeito sorridente, magro e pequenino com algo picaresco, se ali se espicha-se. Ai das três filhas que teve, Enide, Lúcia, Suzete, também. E até da mulher, Maria Bernardete, companheira de sete décadas.

Aquele cantinho é dele, só dele: abriga a chapa onde prepara os sanduíches afamados que alegram a gente. É o tablado onde prestidigita e entretém seu público. Naquele recinto, ninguém prepara lanches a não ser ele. A norma número 1 não escrita, mas sabida e respeitada por todos.

Das suas artes, sobreleva, segundo o próprio autor, o sanduíche de linguiça calabresa. Com queijo e vinagrete como opções de acompanhamento. O segredo, contava, era a cura da carne: dois ou três dias suspensa no fundo daquele pequeno espaço. O tempo necessário para deixá-la mais sequinha e saborosa, pronta para botar no pão francês, depois de ser cuidadosamente grelhada.


Queixava-se de queda no movimento, sempre comparando com um passado cada dia mais distante e para sempre perdido.“Ele estava superdeprimido. Acho que meu pai morreu de tristeza. Tudo se agravou depois da piora da saúde da minha mãe [a madeirense Maria Bernardete, 89, não anda mais depois de fraturar o fêmur e a memória dela sofre lapsos devido ao mal de Alzheimer] e do fechamento do bar”, avalia a filha Lúcia, ao portão da casa onde a família vive reunida, vizinha ao “segundo lar”.

“Claro que também havia a questão da idade dele, da diabetes, mas o bar era a alegria dele, mais de quarenta anos. Ele queria ficar lá, conversar com o pessoal. O bar é o meu pai, e ele agora não está.”
Lúcia, a filha mais nova, se emociona com a velocidade extrema com que tudo teve de acontecer pressionado pela pandemia. “A gente teve de correr e correr para enterrar meu pai. Tudo às pressas. A ficha ainda nem caiu direito para mim.”
Foi-se Seu João, foram-se seus sanduíches. E para onde foi, de onde está, não há delivery.

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